Entre os dias 25 e 27 de junho, Fortaleza (CE) sediará o 4º Encontro Parlamentar Latino-Americano sobre Armas e Gênero, reunindo representantes de dez países da região. A programação será realizada na Assembleia Legislativa do Ceará (Alece), com painéis temáticos, oficinas técnicas e debates legislativos voltados à prevenção da violência armada com foco em gênero. O evento acontece pela primeira vez no Brasil e tem como base o Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA), tratado internacional assinado pelo país em 2013 e ratificado em 2018.
A realização do encontro é resultado de articulação política entre parlamentares e instituições internacionais. Segundo a senadora Augusta Brito (PT/CE), uma das organizadoras do evento, isso foi resultado do trabalho de seu mandato junto a parlamentares da América Latina e Caribe e também junto ao Secretariado do TCA, o Tratado de Controle de Armas, com sede em Genebra. A coordenação técnica está a cargo da Asociación para el Análisis de Política Pública (APP), da Argentina, que atua com levantamentos e análise de dados sobre o tema.
Entre os temas que serão debatidos, estão rastreamento de armas leves, controles fronteiriços, mecanismos de fiscalização e o papel dos parlamentos na regulamentação e aplicação do tratado. Para a senadora, controlar o fluxo irregular de armas é essencial.
“Infelizmente não é incomum que o crime organizado tenha acesso a armas que seriam de uso exclusivo das Forças Armadas”, alertou. “Essas armas chegam ao Brasil de forma irregular e muitas delas foram desviadas de vendas feitas por países que desrespeitaram o tratado ao fornecer armamento a regimes e países que estão em conflito.”
Ela aponta que a circulação de armamentos contribui diretamente para o agravamento da violência. “Precisamos conter esse comércio irregular. É ele que abastece o crime organizado e vitima não só mulheres e crianças mas pais de família inocentes. Precisamos de paz e para isso é fundamental que esse tipo de comércio seja controlado.”
Segundo a senadora, o Brasil tem atuado para cumprir o TCA e restringir o acesso a armas pela sociedade civil. “O Brasil é um país pacífico e que respeita as regras internacionais para comércio de armas. Internamente temos trabalhado intensamente para reduzir as possibilidades de que tenhamos mais armas em mãos da sociedade civil.”
Ela acrescenta que a presença de armas está diretamente associada ao aumento da violência de gênero. “As estatísticas são claras e demonstram que quanto maior o número de armas mais vítimas temos entre mulheres e crianças.”
Além de fortalecer a implementação do tratado, o encontro visa promover intercâmbio entre legislações e práticas de países da América Latina. “A troca de experiências entre países que já guardam identidade geográfica e cultural é fundamental. Precisamos conhecer como nossos vizinhos estão implementando o tratado e como eles estão adaptando suas legislações às exigências dele”, disse a senadora. “Tenho muita curiosidade de comparar nossa legislação à de outros países e de buscar nelas aperfeiçoamentos que podemos trazer para o Brasil.”
Gênero, dados e papel da sociedade civil na prevenção da violência armada
A inclusão do recorte de gênero no TCA não nasceu nas instituições oficiais, mas sim da pressão da sociedade civil. A argentina Maria Pia Devoto, integrante da International Action Network on Small Arms (IANSA), relembra que o tema não constava na proposta inicial dos Estados. “Durante o processo de negociação do Tratado sobre o Comércio de Armas (TCA), a questão de gênero não estava na agenda dos Estados. Foi a sociedade civil, especialmente a Rede de Mulheres da IANSA, que impulsionou a inclusão desse tema no Tratado.”
Para ela, embora o reconhecimento formal da violência de gênero no tratado represente um avanço, sua aplicação é desigual. “A implementação por parte dos países da região é desigual. Há alguns bons exemplos, mais sólidos, em que há capacitação contínua, por meio de cursos e oficinas, sobre as disposições de gênero e sobre o Tratado em geral, voltadas para os(as) funcionários(as) que o implementam.”
Ela avalia que encontros como o de Fortaleza cumprem papel estratégico ao articular parlamentos, governos e sociedade civil. “O envolvimento de parlamentares e iniciativas como este workshop em Fortaleza são fundamentais, pois permitem que os países da região compartilhem boas práticas e coordenem esforços.”
Dados apontam para um cenário grave
“A América Latina e o Caribe concentram 8% da população mundial, mas registram um terço dos homicídios globais — uma relação desproporcional que evidencia os altos níveis de violência”, denunciou Devoto.
Embora a maior parte das vítimas de homicídio com arma de fogo sejam homens jovens, ela chama atenção para o impacto sobre mulheres. “Cerca de 70% das mulheres na região já sofreram algum tipo de violência de gênero, e estima-se que 11 mulheres sejam vítimas de feminicídio por dia. As armas de fogo são responsáveis por um terço desses casos, sendo um claro instrumento de violência contra a mulher.”
A especialista também destaca os desafios estruturais enfrentados pelos países da região. “Os desafios na região incluem desde a fragilidade nos controles estatais, casos de corrupção, fronteiras porosas que facilitam o tráfico ilícito, falta de rastreabilidade das armas, implementação ineficaz das normas, até a impunidade no sistema judiciário em relação aos crimes de violência contra a mulher e o machismo estrutural.”
Fortalecer a cooperação entre Estado e sociedade
Devoto reforça a importância da produção e uso de dados desagregados por sexo, idade e identidade de gênero. “Identificar o tipo de arma, os autores dos crimes e o local onde ocorreram feminicídios ou casos de travesticídio/transfeminicídio permitirá que a política pública seja mais direcionada e torne visível como a violência armada afeta de forma diferente homens, mulheres e outras identidades de gênero.”
Na avaliação dela, o sucesso da aplicação do tratado passa por uma atuação coordenada entre os poderes públicos e organizações civis. “Este workshop é um exemplo claro de colaboração. Contaremos com a presença de representantes de governos, parlamentares e membros da sociedade civil de 10 países.”
Devoto ressalta que a fiscalização deve vir dos dois lados. “Os parlamentos têm o papel de fiscalizar os governos, por meio de pedidos de informação ou discussões sobre transferências de armas em comissões específicas. Por outro, a sociedade civil monitora essas transferências, seus impactos e apresenta evidências e a voz das vítimas.”
A programação será concluída no dia 27 de junho, com uma cerimônia de encerramento no Auditório Murilo Aguiar, na Alece, às 11h, aberta ao público. Na ocasião, será apresentado um resumo dos compromissos assumidos pelos países presentes e as estratégias definidas para o avanço da aplicação do tratado na América Latina.
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